sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Os Lenços de Papel da Doutora Nilde

Um dia nosso sobrinho comum chegou num carro que não era o dele, o que me fez pensar em novidade de posse, talvez um presente inesperado, mas ele logo esclareceu: “É da tia Nilde. Me emprestou enquanto o outro conserta”. Eu não entendo nada de carros, aliás, eu não entendo nada de coisa nenhuma, mas sou curioso, por isso aproveitei o tempo do trajeto até à praia para tentar compreender o carro da dra. Nilde. Uma coisa que logo percebi foi que ele estava impregnado da lida profissional dela – o veículo mais parecia uma sucursal do Fórum e devia ser, com certeza, uma extensão do seu escritório. O carro era dinamicamente desarrumado, com várias pilhas de documentos jurídicos alojadas sobre o piso, algumas bem próximas aos pedais do motorista, outras em frente ao banco do carona (na terceira vez que meus desastrados pés tropeçaram nelas foi que pude entender, da forma mais dolorosa, o significado da expressão latina dura lex, sed lex). Acomodados sobre o banco traseiro, como que ali jogados, havia vários exemplares do Diário Oficial. Ao lado deles, uma caixinha aberta de lenços de papel. Durante muito tempo associei lenços de papel à personalidade da ilustre advogada; agora mesmo acabo de fazê-lo; o fato de ter visto, há pouco, uma caixa deles foi o que desencadeou na minha mente – e também no meu coração – essas suaves lembranças.

A dra. Nilde provavelmente nunca saberá, mas uma atitude dela foi determinante para uma mudança radical na minha forma de pensar o mundo e de avaliar essa coisa meio sobrenatural chamada opinião pública. Aconteceu em meados dos anos noventa, quando ela morou em um apartamento de uma pessoa conhecida nossa. Quando mudou-se do imóvel, ela deixou um armário abarrotado de jornais, com a recomendação de que fossem doados a um dos porteiros do prédio, para que ele os vendesse em proveito próprio. Quando o apartamento ficou desocupado, seu proprietário, que à época residia no Acre, ligou para Pacatuba, onde então morávamos, e nos pediu para que cuidássemos do imóvel. Certa madrugada, estando eu nesse lugar, insone e inquieto, ocorreu-me ler alguns dos jornais deixados pela dra. Nilde, na esperança de neles encontrar sono. Mas o que me provocou a leitura daqueles amarelados periódicos foi, na verdade, uma formidável e iluminada descoberta. Lendo indisciplinadamente exemplares antigos e recentes, e cotejando uns com outros, pude constatar não a efemeridade das palavras escritas como também dos conceitos e opiniões nelas contidos. Era interessante ler um artigo solene, escrito por um jornalista renomado, e depois verificar que todas as previsões e especulações dele revelaram-se erradas. Sob a perspectiva da distância do tempo, coisas que antes eram importantes tinham-se tornado irrelevantes. Pude acompanhar, no período de cerca de três anos que os jornais cobriam, paradigmas de moda tornarem-se velharias anacrônicas e pessoas que eram notáveis num determinado momento, noutro caírem no esquecimento, jogadas num limbo profundo de onde nunca mais sairiam. Vi, através da montanha de jornais deixada naquele armário, governos oligárquicos, aparentemente eternos, serem derrubados e grupelhos políticos, obscuros e exóticos, ascenderem ao poder. Assisti também, através dos registros implacáveis daquelas folhas, aos bem-sucedidos de ontem transformarem-se nos malogrados de depois. Hoje, quando alguém me vem alardear uma suposta novidade, uma pretensa idéia revolucionária, ou alguma transformação “extraordinária” nas artes, na ciência ou na política, eu lhe digo, enigmaticamente: “Leia jornais antigos!”. A dra. Nilde me proporcionou, sem o saber, um Curso Intensivo de Leitura Cética que durou apenas uma noite, mas que transfigurou para sempre, e creio que para melhor, meu modo de analisar o mundo e seus agentes modificadores, principalmente os chamados veículos de comunicação de massa, a mídia, o enganoso quarto poder.

Toda essa inesperada viagem por esse passado recente comoveu-me e umedeceu-me os olhos. Onde está mesmo aquela caixa de lenços de papel?

6 comentários:

Renata disse...

Bom de ler, viu? Principalmente a piadinha do "dura lex...", hehehe!

Rodrigo Santiago disse...

Descobri que a efemeridade da opinião pública baseia-se inteiramente no coletivo da efemeridade da opinião individual. E descobri em mim mesmo, enquanto selecionava textos do meu blog para registro. Imagine o que acontecia toda vez que eu prometia ou me comprometia com algo em algum texto? Eu esquecia, logo em seguida.

Estou envergonhado pela minha falta de direção. O que foi bom é que eu realmente nunca parei de escrever, e isso eu nunca prometi. Se tenho um grande hiato de publicações no blog, me agrada o simples fato de os textos destas datas não terem sido escritos lá, mas estarem em cadernos. Quase uma dezena deles.

Quanto aos jornais, só uma coisa não muda nunca: a Fernanda Montenegro sempre vai ser a maior atriz do país, em qualquer jornal, em qualquer data.

Renata disse...

hhaahah, quem é rodrigo santiago? adorei o comentário.

ps - já o que acabei de dizer podia ser visto como efemeridade da opinião individual, rsrsrs.

Rodrigo Santiago disse...

Oi, Renata.

Rodrigo Santiago sou eu, ué... Tenho até orkut! :)

www.rodrigo.st

Lá estou. Bjs!

Renata disse...

a julgar pelo ditado "diz-me com quem andas...", rodrigo é uma pessoa suspeita, hehehehe... ;)

Andre Fernandes disse...

veuri guud!
valew a visita no blog confrade, retribuindo um abraço e...vai um lencinho pro menino aí! rsrs.
muito bom.
abraço.